Ensaio sobre Portugal, parte 1

Posted on Jun 7, 2011

Entre tempos livres e pensamentos que me ocorrem, ando há umas semanas a rabiscar uns textos sobre este Portugal aonde habitamos. Fi-lo para minha própria referência, porque gosto e porque acho que a escrita é um excelente instrumento de preservação do que nos vai na alma durante vários contextos da nossa vida.

Decidi que vou partilhar este ensaio neste blog por dois motivos. Primeiro porque a ocasião é propícia pois vivemos tempos de contestação e de reflexão como há muito não me recordo, e segundo tenho um genuíno interesse em provocar reacções a algumas destas ideias e pode ser que consiga obter algumas, espero que sim.

O texto é um bocado longo e por isso decidi parti-lo às postas. De outra forma seria intragável e provavelmente enfadonho, infelizmente não me parece que eu tenha o dom de quem consegue agarrar o leitor ao blog pelas sábias e mágicas palavras. Por outro lado eu tenho este hábito antigo de arrumar as minhas ideias em caixas e estruturar o meu raciocínio quando escrevo, como se de um programa de computador se tratasse, e portanto já tenho tudo preparado para debitar isto em lotes, melhor assim.

O que se segue deixa-me com uma ligeira sensação de nudez porque não me sai naturalmente, sou tímido e introspectivo de personalidade e não é habitual extravasar muito para além das minhas facetas profissionais ou das minhas áreas de conforto nativas.

Sobre mim

Tenho 38 anos e nasci e cresci longe das grandes cidades num sítio que poucos conhecerão e que se dá pelo nome de Sangalhos, talvez mais conhecido pelos tempos gloriosos do ciclismo e do basquetebol, terra das caves vinícolas e do leitão da bairrada. Os meus avós foram lá ter, os meus pais nasceram e cresceram lá e o mesmo nos aconteceu, a mim e ao meu irmão, os meus tios e primos e outras ramificações da nossa árvore genealógica. Digamos só que o nosso apelido não passa despercebido na pequena e pacata, mas grande, vila de Sangalhos.

Nunca houveram nem grandes tragédias nem grandes novelas na nossa família, sinto-me privilegiado por ter crescido rodeado por todos os meus avós, primos e tios e bons amigos na infância, num ambiente estável, com estrutura, cheio de vitalidade, e com fortes laços de família e de amizade. Até mesmo muito tarde eu não conseguia sequer conceber conceitos como o divórcio, a separação ou a própria morte. Acostumei-me aos grandes almoços que nos reuniam a todos, às vindimas, à romaria de porta em porta indiscritível que era (e é) a Páscoa na nossa terra, ao Natal e à missa do galo, à matança do porco em casa dos meus avós, aos jogos de basquete do SDC ao fim de semana, a brincar e a jogar livre na rua com os meus amigos, e a ir a pé para a escola.

Fui educado com muita liberdade mas também com um forte sentido de responsabilidade e os meus pais conseguiram-me ensinar desde muito cedo, com mestria e com um tacto invejável, que nada me ia cair do céu durante a vida se eu não lutasse por isso e o merecesse. Ensinaram-me a ser honesto mas ambicioso, a não desistir, a ter garra, e que é possível alcançar quase tudo na vida se realmente nos empenharmos. Levei com todos os puxões de orelhas, castigos, elogios e recompensas que mereci. Como lhes agradeço por tudo.

Há muitos episódios da minha educação que me marcaram e me transmitiram alguns dos valores que me moldaram como adulto e dos quais não me esqueço com facilidade. Vou só mencionar dois para efeitos de ilustração do que pretendo dizer mais tarde:

Por volta dos 11 anos eu descobri com bastante intensidade e determinação que os computadores e tecnologia iam de alguma forma fazer parte do que eu queria fazer na vida. E ainda nem sequer tinha um computador. A obsessão com que eu acampava às 8 da manhã todos os Sábados e Domingos à porta da única pessoa lá do sítio que possuía um Z81, amigo dos meus pais, colocar-me-ia rapidamente num consultório de psicologia infantil pelas normas de hoje, confiem em mim. Os meus pais perceberam imediatamente a vocação mas não se deslumbraram em presentes. Eu tive que perceber que ia ter que lutar por ter o que queria. Só me foi oferecido o meu primeiro computador, um magnifico ZX Spectrum 48K, depois de muitas poupanças e de me esfolar em trabalhos nas férias do verão, e de ter boas notas no liceu. A satisfação com que eu abri o embrulho nesse Natal foi tal que me lembro desse preciso momento como se tivesse acontecido ontem. Mais sobre isto à frente.

Com 19 anos eu já vivia fora de casa dos meus pais. Estudava na Universidade em Aveiro e trabalhava em part-time numa loja de computadores aonde geria uma BBS e ajudava a coordenar e evangelizar o negócio da representação e venda de Commodore Amigas, uma marca de computadores pessoais emergente no início da década de 90. Com este dinheiro e com a ajuda dos meus pais eu conseguia alugar um quarto e viver em Aveiro com uma independência invejável que os meus colegas de curso não tinham. Por esta altura desenvolvi uma nova paixão: a das telecomunicações. Do radio amadorismo às BBS e ao X.25, em breve eu daria por mim a fazer Blueboxing numa base regular. Para encurtar esta história, que prometo dará um texto um dia, fui finalmente apanhado pela Policia Judiciaria. Nesse inesquecível dia bateram-me à porta de madrugada, confiscaram-me todo o meu equipamento informático, levaram-me para a esquadra, interrogaram-me e invadiram a empresa aonde eu trabalhava, para espanto e indignação dos meus chefes, à procura de mais provas.

Poucas semanas mais tarde eu seria constituído arguido naquele que viria a ser um dos primeiros casos de crime por fraude informática em Portugal, um particularmente mediático e insólito para a época que vivíamos. Os pais dos meus amigos parceiros no crime reagiram de formas diversas, uns contrataram advogados, outros proibiram os filhos de voltar a mexer em computadores, outros ameaçaram-nos de os tirar da Universidade, e outros tudo ao mesmo tempo. Os meus, surpreendentemente, e daí a marca, não fizeram absolutamente nada. Não me repreenderam, não alinharam em histerias, não tentaram resolver nada. A minha vida continuou como se nada tivesse acontecido e eu limitei-me a assistir às consequências que o episódio teve nas vidas dos meus amigos. Não é que fossem insensíveis, ou que não reagissem de outra forma se o caso fosse muito mais grave, mas havia nesse tempo uma mensagem muito mais importante para me transmitir: eu era crescido, sabia o que andava a fazer, sabia perfeitamente distingir o bem do mal, não era um jovem baralhado, e até prova em contrário teria que lidar com a responsabilidade das consequências dos meu actos.

Um ou dois anos mais tarde, eu e mais 5 colegas criámos o SAPO no Centro de Computação da Universidade de Aveiro. Se anteriormente a reacção dos meus pais tivesse sido metade daquelas a que os meus amigos se sujeitaram, talvez a história da minha vida hoje fosse outra, uma completamente diferente.

A seguir, daqui a uns dias, a parte 2: Ideologia